JURISDIÇÃO
CONSTITUCIONAL NO BRASIL
A
expressão “Jurisdição constitucional” é muito ampla. Na verdade, significa duas
coisas bem definidas, espécies desse gênero. Uma é o controle de constitucionalidade. Outra é sob a perspectiva da interpretação e aplicação da constituição em geral.
É preciso
contextualizar o momento contemporâneo do direito constitucional brasileiro.
Nós precisamos, nos últimos anos, nos ajustar a um conjunto de transformações
que assinalaram a prática do direito contemporâneo. Algumas foram mais antigas
em algumas partes do mundo, mas chegaram no Brasil nas últimas décadas.
A
primeira delas, é que o momento contemporâneo indica a superação de um formalismo jurídico. Era uma
visão do direito tradicional praticada em alguns espaços que se fundava em duas
premissas filosóficas e ideológicas. A primeira era de que a lei era uma expressão da razão,
trazendo em si uma justiça imanente. Em segundo lugar, que o papel do juiz era de revelar, aplicar, nos casos concretos, a solução dos problemas que já estava pré
pronta no ordenamento jurídico, na lei.
Para bem
ou para mal, a vida já não é mais assim. A lei, a norma jurídica e mesmo a
Constituição, já não traz em si soluções pré prontas e, consequentemente, o
juiz já não é mais o profissional que desempenha uma função técnica de
conhecimento. Em muitas situações, o juiz é co-participante do processo de
criação do direito.
A segunda
transformação diz respeito ao advento de uma nova cultura que tem sido chamada
de pós-positivista. O
positivismo jurídico foi a filosofia do direito na maior parte do século XX e
pretendeu fazer com que todo o direito coubesse integralmente dentro da lei. O pós-positivismo promove uma certa reaproximação entre o
direito e a moral e traz para o centro do sistema jurídico a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais.
A verdade
é que em universo em que as condições para os problemas jurídicos já não estão
mais pré prontas na norma, é preciso buscá-la em outros lugares, muitas vezes
na filosofia moral e na filosofia política. Por isso o direito contemporâneo
aproximou-se da filosofia moral e os valores morais ingressam, normalmente, pela porta larga dos princípios constitucionais.
Nós
viemos uma fase pós-positivista, em que a lei não é desimportante – pois a lei
é um instrumento importante da despersonalização do poder – mas o direito não
cabe integralmente na lei e muitas vezes é preciso buscar a justiça e a
legitimidade democrática fora do alcance da lei.
A
terceira grande transformação do direito no mundo contemporâneo foi a passagem da Constituição para o centro do sistema
jurídico. Há anos atrás, os estudantes de direito e os professores mais
antigos de hoje foram educados numa cultura em que o centro do sistema jurídica
estava no bom e velho Código Civil, em que o direito comum era o direito civil.
Na verdade, todos os grandes pressupostos do direito, toda a dogmática jurídica
ao longo do século 19, sobre os pressupostos do direito civil, a começar por um
dos grandes sistematizadores que foi Savigny. Portanto, o direito herdeiro da tradição
romana era construído sobre bases privativas, nas quais os grandes
protagonistas eram o proprietário e o contratante. No século XX, esse direito que era privado começa a se
publicizar.
Progressivamente,
vão sendo introduzidas as normas de ordem pública, que não
podem ser afastadas pela vontade das partes, como as normas que protegem o
trabalhador, depois as normas que protegem o locatário, depois as normas que
protegem o consumidor, e portanto o direito privado passa a ter uma dose de
publicização. No final do século XX, há um movimento maior, que é a passagem da
a Constituição para o centro do sistema jurídico, chamado constitucionalização do direito.
Constitucionalização
do direito, no Brasil, não significa apenas que há na Constituição normas que
pertencem a outros ramos jurídicos. Não é a vinda do direito
infraconstitucional para a constituição. É a ida da Constituição para outros
ramos do direito, mudando o sentido e o alcance de suas normas. É por isso que
hoje em dia se fala em constitucionalização do
direito civil, do direito administrativo, do direito penal. É a
leitura de todo o direito à luz da Constituição. Ocorreu uma revolução
copernicana, fenômeno que no Brasil não tem nem 30 anos, mas que introduziu uma
revolução na jurisprudência e, consequentemente, na advocacia em geral.
O
constitucionalismo democrático, em última análise, foi a ideologia vitoriosa do
século XX: poder limitado, centralidade dos direito fundamentais, justiça
material, tolerância, igualdade e, quem sabe, até felicidade.
Em quase
todos os países do mundo democrático nas últimas décadas que se seguiram a
segunda guerra mundial, houve uma vertiginosa ascensão do Poder Judiciário,
deixando de ser um departamento técnico especializado e passa a ser verdadeiramente
um poder político e que de certa forma disputa espaço com outros poderes. Há
algumas causas mundiais para essa ascensão.
A
primeira delas é que o mundo saiu do cataclismo da segunda
guerra mundial com a
compreensão de que para proteger a democracia
e os direitos fundamentais era
importante a existência de um Poder Judiciário
independente e capaz de fazer valer a Constituição e as leis contra o arbítrio e, quando necessário,
contra a vontade das maiorias. Por essa razão, depois da segunda guerra
mundial, criam-se tribunais constitucionais sucessivamente em diferentes
países, a começar pela Alemanha, com impacto que isso teve sobre todos os
países que sofrem a influência do direito europeu continental. O direito
americano é uma outra narrativa. Até o segundo pós guerra, os Estados Unidos
tinham pouca relevância e repercussão sobre o modo como se pensava e praticava
o direito no Brasil. A ascensão da influência americana começa depois do pós
guerra e se intensifica ao final do século XX.
A segunda
razão para um certo protagonismo do Judiciário no mundo contemporâneo, se deve
ao fato de que na vida moderna há algumas decisões políticas que são altamente
divisivas da sociedade. Moralmente divisivas. Os parlamentos, porque dependem
de voto, muitas vezes não conseguem resolver os problemas. Questões como o
aborto, uniões homoafetivas, em toda parte do mundo, acabam tendo o Poder
Judiciário como seu protagonista, porque no seu processo legislativo
majoritário não se forma os consenso necessários, as maiorias necessárias, para
solucionar estes problemas. Até porque quem tem voto, tem um certo custo
político ao tomar determinadas decisões e preferem não tomá-las, de modo que o
Judiciário teve que ocupar certos espaços onde o processo político majoritário
não foi capaz de produzir resultados.
Em
terceiro lugar – e esse também não é um fenômeno puramente brasileiro – há uma
expansão do Poder Judiciário na mesma medida em que há uma certa perda de
prestígio institucional do legislativo. A democracia representativa vive
dificuldades em toda parte do mundo. Os parlamentos estão sob questão quanto a
sua legitimidade, credibilidade e funcionalidade em diferentes países e também
no Brasil. A ascensão do Judiciário se dá no contexto de um certo descrédito da
representação política em geral.
A esses
fenômenos que são mundiais, a judicialização no Brasil agrega dois componentes
muito visíveis. O primeiro deles é que a Constituição brasileira de 1988 é
excessivamente abrangente. Trata de muitos temas e de maneira excessivamente
detalhada. Isso contribui para a judicialização porque, de certa forma, trazer uma matéria para a Constituição é
retirá-la da Política e trazê-la para o Direito. O que
está em uma Constituição vertida em norma, isto potencialmente gera pretensões
judiciais a serem ajuizadas por pessoas que têm a pretensão de titularizar os
mais diversos interesses.
Se a
Constituição cuida do sistema tributário, previdenciário, regime jurídico da
Administração Pública, de índios, de criança, de adolescentes, de idosos e até
da sede do Colégio Pedro Segundo (art. 242, § 2º), evidentemente as pessoas
veiculam pretensões com base nessas normas. Essa é uma razão tipicamente
brasileira para a judicialização.
A isto se
acresce o modelo de controle de
constitucionalidade que vigora no Brasil, que combina o sistema difuso
incidental do modelo americano e o modelo do controle concentrado abstrato do
modelo europeu, de modo que no Brasil, todo juiz é um interprete da
Constituição porque em qualquer questão, ele pode aplicar a Constituição e pode
inclusive declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de uma norma no
desempenho ordinário da sua função. Além disso, há no Brasil um conjunto de
ações diretas que permitem que quase qualquer questão com um mínimo de relevância
possa chegar diretamente ao Supremo. Via Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI), Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) ou Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
Para
complementar, no Brasil, o elenco de pessoas que podem propor as referidas
ações é extremamente largo (Procurador Geral da República, Governadores de
Estado, Presidente da República, mesa das Assembleias Legislativas,
Confederações Sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional, partidos
políticos e a OAB).
São
centenas de legitimados que podem alçar diretamente o STF, de modo que o
interesse precisa ser de pouquíssima relevância para que não conseguir que pelo
menos um desses legitimados se disponha a patrociná-lo perante o Supremo
Tribunal Federal, de modo que muitas questões se judicializam e se politizam
mais rapidamente porque já começam no âmbito do STF.
Em quase
toda parte do mundo, a Suprema Corte também exerce jurisdição recursal, de modo
que uma questão antes de chegar lá, passou pelo primeiro grau de jurisdição,
pelo segundo e aí chega ao Supremo, havendo portanto um debate e uma exposição
maior sobre essa matéria. Algumas questões no Brasil, como por exemplo, a legitimidade das pesquisas de células
tronco embrionárias, a lei foi aprovada e em 15 dias depois a lei já estava em
discussão do STF. Esta é uma das discussões de temas moralmente complexos.
Portanto,
não há de surpreender ninguém que exista hoje no STF uma grande quantidade de
questões que são questões político-institucionais ou morais complexas. O STF
decidiu nos últimos anos ser proibido o nepotismo no Poder Judiciário.
Basicamente foi uma resolução do CNJ. A matéria chegou ao STF ao argumento de
que seria necessária a lei para proibir, não cabendo fazê-lo por resolução, mas
o STF decidiu que não era necessária a edição de lei para impedir o nepotismo,
uma vez que a proibição poderia ser extraída diretamente dos princípios da
moralidade e impessoalmente, previstos no art. 37 da Constituição. Foi uma
decisão revolucionária que após gerou súmula vinculante para os três poderes da
República. Trata-se de um salto qualitativo dado pela jurisprudência diante do
emperramento da máquina legislativa.
Outras
questões como a interrupção de gestação
de fetos anencefálicos, igualmente porque não vinha legislação que
cuidasse da matéria, o STF em algum momento passou a tratar disso diretamente.
Também fez isso com relação às uniões homoafetivas. Não
importa o que cada um pense a respeito ou deseje para si, sendo todos os pontos
de vista respeitáveis, mas a homossexualidade é um fato da vida, as pessoas têm
o direito de amar e o direito não pode fazer de conta que isso não está
acontecendo. É preciso saber como se partilham os bens, se é necessário
assinatura conjunta de documentos pelos parceiros, se pode ser dependente de
plano de saúde, é preciso saber um conjunto de relações. De modo que se o
legislativo não legislou, o STF em boa hora atuou para dizer que deve-se
equiparar as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais.
Evidentemente que existem pessoas que não apoiam por razões filosóficas e
religiosas, posição que merece respeito, tanto quanto o merece aqueles que
entram em relações homoafetivas e têm o direito de verem tais uniões
reconhecidas no seu afeto.
O STF
decidiu sobre cotas raciais, fidelidade partidária, greve no serviço público, celulas-tronco embrionárias, em
todas essas matérias o tipo de constituição que nos temos permitiu a
judicialização, de modo que esta decorre do arranjo constitucional brasileiro,
não sendo uma atitude deliberada do Poder Judiciário.
O que
pode ser uma atitude deliberada não é a judicialização, é o ativismo judicial:
chegando a questão ao Poder Judiciário, ele adotar uma postura expansiva, uma
postura de elevar princípios constitucionais ou direitos fundamentais previstos
na Constituição a situações que não foram especificamente contempladas. Foi o
que o STF fez com relação às uniões homoafetivas e com a questão da interrupção
da gestação de fetos anencefálicos. No caso das pesquisas de células-tronco
não, essa não foi uma decisão criativa. Foi uma decisão auto contida, pois
existia a lei, a lei é que autorizava. O que o STF fez foi confirmar a
constitucionalidade da lei.
Talvez o
que tenha subvertido a cultura jurídica tradicional e, de certa forma, ainda há
uma quantidade de reação a este fenômeno que envolve a nova interpretação
jurídica e a nova interpretação constitucional, que particularmente em matéria
de interpretação da Constituição, tem modificado, de forma significativa, o
modo de aplicação do Direito.
A
interpretação constitucional é uma modalidade de interpretação jurídica e, como
tal, se socorre dos elementos tradicionais de interpretação jurídica aprendidos
no primeiro semestre da faculdade de Direito: elemento gramatical,
histórico, sistemático e teleológico. Interpretar a Constituição é
interpretar uma norma jurídica e esses elementos continuam importantes como
sempre foram.
Houve uma
discussão no STF que envolvia precisamente a perda de mandato por parlamentar
que tenha sido condenado criminalmente. O art. 55 da Constituição diz que perde
o mandato o parlamentar que tenha sido condenado criminalmente. Em seguida, vem
um parágrafo e diz: neste caso, a perda do mandato será decidida pela Câmara ou
pelo Senado, em votação secreta, por maioria absoluta. É uma péssima norma. Não
devia estar lá, pois a condenação criminal, pelo menos acima de um determinado
grau de gravidade do delito, deveria ter esta consequência automática. Mas
Constituição diz o contrário: cabe a Câmara ou ao Senado decidir por maioria
absoluta em votação secreta.
Aí,
surgiram duas interpretações: a interpretação perfeccionista, que procura fazer
o que seria justo e lógico, que é automaticamente decretar a perda do mandato.
Mas existe um texto constitucional, ao qual devemos alguma reverência. Não
somos constituintes e no dia em que a constituição for aquilo que queremos que
seja, independente do texto, cairemos em situação muito perigosa. De modo que,
por que o texto é o limite para a interpretação e porque o texto constitucional
dá expressamente a competência ao Congresso, contra o nosso entendimento
pessoal e nossa vontade política, devemos seguir o texto constitucional.
Portanto,
aquelas noções elementares do elemento gramatical na interpretação jurídica em
geral valem também para o texto constitucional. Se está dito preto, não posso
interpretar branco, por mais que o entenda correto.
Existia e
continua existindo uma interpretação jurídica tradicional e princípios específicos de interpretação da
constitucional: supremacia da Constituição, da presunção de constitucionalidade das leis, da interpretação conforme a Constituição, da unidade, da razoabilidade e da efetividade. Esse
era o mundo ordinário.
O
problema é que no mundo tradicional, a interpretação jurídica era feita
basicamente por um raciocínio singelo e silogístico: a norma funcionava como
premissa maior, o fato relevante como premissa menor e a sentença era a
conclusão, produto do enquadramento dos fatos na norma.
A
Constituição prevê que aos 70 anos, o servidor público passa para a
inatividade. O servidor público completa 70 anos e impetra mandado de segurança
para manter-se no serviço, pois se sente bem de saúde. O juiz não terá nenhuma
dificuldade para denegar a ordem, pois a Constituição é claríssima no tema. Se
o ex-presidente Lula, na época, tivesse requerido o registro eleitoral para um
terceiro mandato consecutivo, o TSE não teria qualquer dificuldade em negá-lo,
pois a Constituição é claríssima quanto a solução apontada, ou seja, permite-se
a reeleição para um único mandato consecutivo. Esse é o raciocínio jurídico
convencional fácil, que resolve os casos fáceis.
Acontece
que nem sempre a questão é tão singela assim. A vida muitas vezes cria um outro
tipo de situação. No fundo, a nova interpretação constitucional surge porque a
vida ficou mais complicada, plural, diversificada. Um exemplo: a constituição
passada previa uma única modalidade de família legítima, que era a do
casamento, já a Constituição de 1988 previu três: a do casamento, a monoparental, a união estável e o STF já chancelou a união homoafetiva.
A vida se
tornou surpreende e extravagante e evidentemente o Direito posto não é capaz de
cobrir todas as situações. Mesmo as situações previstas geram colisões que dificultam a determinação de qual é a
solução correta no caso concreto. Por exemplo, o cantor Roberto Carlos
ingressou em juízo para procurar impedir a divulgação de uma biografia não
autorizada, baseando-se no seu direito de privacidade e de imagem. O jornalista
que publicou a obra alega em seu favor a liberdade de expressão e o direito de
informação do público acerca de uma personalidade pública. Em cada um dos lados,
direitos fundamentais. Como é que o juiz deste caso resolverá o problema pelo método tradicional de subsunção do fato à
norma, se existem quatro normas colidentes que postulam incidência
sobre a mesma hipótese? Ele não pode se socorrer da metodologia tradicional. O
juiz terá que construir a solução argumentativamente. Naquele caso concreto, o
direito será, ao menos em parte, produto de uma criação judicial.
Portanto,
os casos difíceis são aqueles casos para os quais não existe
uma norma ou para os quais existem muitas normas que postulam incidência.
Procura-se sistematizar 3 grandes causas que fazem surgir os casos difíceis.
A
primeira causa é produto de uma circunstância do Direito quando não da vida. A linguagem tem muitas ambiguidades. Além
disso, o Direito se socorre muitas vezes de uma linguagem principiológica associada a direitos fundamentais cujo
sentido ou alcance precisa ser determinado. Mesmo na rotina da vida, às vezes é
preciso saber o que significa “servidor público”, o que significa “tributo”, o
que exatamente significa “calamidade pública”, “interesse social”. O Direito
tem muitas ambiguidades que decorrem da linguagem, e consequentemente, o juiz
tem que construir o sentido. Em razão da vagueza da linguagem, surgem muitos
casos onde é preciso saber se uma situação está ou não violando a dignidade da
pessoa humana, a moralidade, a razoabilidade.
A própria
vagueza da linguagem constitucional por vezes cria casos difíceis. Não só no
Direito, mas em outros cenários a vagueza da linguagem pode criar situações
difíceis. Um sujeito mais avançado em idade namorava uma moça nova e descolada,
criou coragem e disse “Você gostaria de ser a mãe dos meus filhos?” a moça
respondeu “depende, quantos filhos você tem?”, portanto, não estavam exatamente
falando a mesma língua. Ou melhor, estavam, mas não estavam significando a
mesma coisa. São as ambiguidades.
Em
segundo lugar, existem os desacordos morais
razoáveis. Num mundo contemporâneo, existem muitas situações em que pessoas
esclarecidas e bem intencionadas vão pensar de maneira radicalmente diferente.
Um dos casos emblemáticos nesse sentido é sobre pessoas que professam a
religião Testemunhas de Jeová, as quais por convicção religiosa não admitem a
transfusão de sangue. É um episódio relativamente recorrente em hospitais
públicos, quando o médico considera que a transfusão de sangue é essencial para
salvar a vida do paciente e este se recusa terminantemente a receber a
transfusão de sangue. O hospital consulta a procuradoria e recebe um parecer no
sentido de que deve salvar a vida da pessoa. Em outro caso idêntico, recebe um
parecer no sentido de que a autonomia do paciente deve ser respeitada.
Essa é
uma questão em que pessoas bem intencionadas e esclarecidas pensaram de forma
diferente. Não existe norma sobre isso, mas o juiz terá que construir a
solução, havendo grande perigo de perda da segurança jurídica, dada a dose
importante de subjetividade na formulação da solução. Outros temas como eutanásia, suicídio assistido, a descriminalização de drogas leves. A
questão de uniões homoafetivas, antes
de chegar ao STF, tinha decisões judiciais para todos os gostos.
O
fenômeno da pré-compreensão, que é um conceito jurídico que identifica o
conjunto de elementos e de ideologias introjetados no intérprete faz muita
diferença. O que cada um traz dentro de si faz muita diferença na interpretação
em geral.
Para
ilustrar: conta-se que o famoso jogador de futebol Mané Garrincha que foi a
Roma jogar pela seleção brasileira. Após o jogo, foi levado em um city tour até o
famoso Coliseu. Ele deu uma declaração “eu não sei porque falam tanto desse
Coliseu. Ele é menor do que o Maracanã e precisa de uma reforma urgente”. Cada
um vê a vida nos limites do seu próprio horizonte. Portanto, na fria
objetividade dali, o Coliseu é menor que o Maracanã e de fato está em ruínas,
porém, havia algumas outras informações que talvez pudessem ter modificado o
julgamento do Mané Garrincha.
Por fim,
existem as colisões de normas
constitucionais. Além do exemplo típico do Roberto Carlos, acompanhou-se o debate
sobre a construção de duas usinas hidrelétricas na Amazônia, havia ali uma
contraposição de normas constitucionais. A posição do Governo de que é preciso
incrementar o desenvolvimento nacional, que está previsto na Constituição,
aumentando o potencial energético do país e a hidrelétrica é o modo mais limpo
de energia que eu posso produzir. Do outro lado, os ambientalistas e populações
locais dizendo que as usinas afetariam as populações ribeirinhas, o
ecossistema, a fauna, a piscicultura e, portanto, se opunham a sua construção.
Judicializada a questão, não é possível ao juiz dizer que os dois lados têm
razão. Ele terá que produzir uma solução, tendo que argumentar porque ele optou
por uma e não por outra.
Quando se
tem uma democracia deliberativa, melhor argumento é aquele capaz de convencer
“o auditório”.
O
“auditório”, para um juiz de direito, é o seu tribunal. O “auditório” do
tribunal de segundo grau, se a questão for constitucional, é o Supremo Tribunal
Federal. E alguém poderia imaginar que como o STF dá a última palavra, ele
seria o “auditório” de si mesmo. Seria triste se fosse assim. A maior solidão é
bastar-se a si mesmo (Vinícius de Moraes). O auditório do Supremo é a sociedade
brasileira, que precisa estar confortável, convencida de que aquela é a melhor
solução para o caso concreto. Onde não haja uma norma pré pronta nem seja
possível existir é que avulta a importância da harmonização jurídica, a
capacidade de demonstrar racionalmente que aquela é a melhor solução para o
caso concreto.
Na seara
criminal, por exemplo, muitas vezes, a solução justa e adequada não é aquela
que corresponde ao clamor público ou a determinadas exigências da sociedade.
Mas esse é o papel contramajoritário. Claro
que o Supremo, em geral, na medida do possível, deve estar alinhado com o
pensamento da sociedade. Porém, é preciso não esquecer que em certos momentos,
o papel do Judiciário é ser contramajoritário.
A
sociedade muitas vezes move-se por paixões. O STF tem que se manter por uma
razão pública. Portanto, em muitos momentos, a qualidade da decisão de um
tribunal não poderá ser medida pela opinião pública, pois ela é volúvel. Quando
o Min. Lewandoski votou pela constitucionalidade da Lei da Ficha limpa, foi
aplaudido nas ruas. Já na Ação Penal n. 470 (Mensalão), quando votou da maneira
que achava certo e que não correspondia ao clamor público, não podia nem sair
na rua. Não devemos fazer nada pensando na opinião pública, devemos fazer
pensando no que é certo.
Nas
colisões de direitos fundamentais, deve-se fazer uma ponderação e, sempre que
possível, produzindo a concordância prática dos dois interesses contrapostos,
mas quando não for possível a harmonização, passa a ser uma escolha, havendo um
lado derrotado. Quem ganha diz “uma bela interpretação da Constituição” e quem
perde diz “mais uma vez estão invadindo o espaço da política”.
Muitas
vezes, a melhor solução é a menos ruim. Um sujeito comprou um opala e vem
descendo a ladeira em alta velocidade quando vem passando um enterro e viu que
não ia conseguir parar, aí disse a si mesmo “Meu Deus do céu, vou mirar no
caixão”. Esse é mais ou menos o juízo da ponderação. Não tem
outro caminho, escolhe-se a solução menos ruim dentro das circunstâncias.
Concluindo,
sobre a jurisdição constitucional, afetada pelo direito contemporâneo, com a
expansão do Poder Judiciário, terá ele que ser proativo. Porém, ninguém dessa
vida deve presumir demais de si mesmo. O Judiciário não deve querer ser mais do
que pode ser. Não pode ter a pretensão de suprimir ou de ocupar o espaço da
política. O Brasil precisa de uma reforma política para melhorar a política e
não que faça o Judiciário tomar o seu lugar.
A vida da
gente é um equilíbrio. Ninguém é bom demais, ninguém é bom sozinho, estamos
sempre nos equilibrando. As vezes a gente pende um pouco para um lado, para o
outro e segue em frente. Pode acontecer de a plateia pode achar que o
equilibrista está voando. Não há problema, pois a vida é feita de algumas
ilusões. Mas o equilibrista, ele tem que saber que está se equilibrando. Se
achar que está voando, ele irá cair. E na vida real, não tem rede. Portanto, a
jurisdição constitucional deve ser exercida da mesma maneira que a vida deve
ser vivida: com valores, com determinação, um pouco de bom humor e com
humildade.
* Escrevi este texto espelhando-me em
palestra proferida pelo professor e ministro do STF Luís Roberto Barroso em
agosto de 2013 no Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB.

Parabéns pelo artigo! Muito interessante a forma da abordagem. Uniu técnica, bom senso, linguagem acessível e humor.
ResponderExcluirAmei o artigo Prof. Alexandre!! Gosto também de tê-lo como professor!!
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