A
rigor, nós só podemos falar em controle judicial de
constitucionalidade no Brasil a partir da proclamação da República.
Até vamos encontrar na Constituição Monárquica de 1824 algum
elemento de controle de constitucionalidade, mas era um controle
tipicamente político, exercido em parte pelo próprio parlamento e
em parte pelo imperador, no exercício do Poder Moderador.
Já
na chamada constituição provisória de 1890 e na constituição de
1891, esse controle de constitucionalidade será um controle
tipicamente americano, de perfil incidental, concreto, tendo em vista
o surgimento de uma necessidade específica de resolver uma
controvérsia concreta com base em uma lei supostamente
inconstitucional.
Uma
série de incidentes são determinantes para a evolução do nosso
modelo de controle de constitucionalidade.
A
Constituição de 1891 havia uma exagerada ênfase no habeas
corpus
como instrumento de defesa dos direitos em geral e não apenas dos
direitos de locomoção. Se criticava muito o uso ampliado do habeas
corpus. Por outro lado, não havia outro instrumento constitucional
específico para a proteção das liberdades em geral. Em 1926, é
feita uma reforma constitucional que limita o âmbito de proteção
do habeas
corpus,
dando-lhe a característica que conhecemos hoje: instrumento
destinado a proteção da liberdade de ir e vir.
Depois
dessa mudança, houve a sensação de que ficou uma lacuna decorrente
da “amputação”, da limitação do habeas
corpus,
pois outros direitos fundamentais ficaram sem instrumentos
específicos de proteção. Em 1934 essa lacuna é preenchida com o
surgimento do mandado de segurança.
Outro
incidente histórico no âmbito da República Velha diz respeito aos
muitos abusos cometidos na vigência da Constituição 1891 na
relação entre a União e os estados. Muitas vezes a União
decretava intervenção federal nos estados sem que houvesse
justificativa política e jurídica plausível para a esta prática.
Dizia-se que nós tínhamos saído de um modelo centralizador que era
o modelo imperial e continuávamos a viver num modelo formalmente
descentralizado mas fortemente centralizado na prática, o que se
dava com a via da intervenção.
Na
reforma de 1926, pela primeira vez surge uma resposta a esta crítica,
quando estabelecem os princípios
constitucionais sensíveis,
hoje constantes do art. 34, VII, da Constituição de 1988. Naquela
reforma, estabeleceu-se que o presidente da República devia se ater,
quanto a infringência aos princípios constitucionais que
justificariam a intervenção federal, aquele elenco de princípios
sensíveis. Foi uma primeira tentativa de retirar o subjetivismo
exagerado que havia no ato de intervenção federal. Essa mudança
depois vai deter efeitos sob a Constituição de 1934
A
Constituição de 1891 traz a possibilidade de controle incidental de
constitucionalidade, podendo o tema chegar ao STF por meio de recurso
extraordinário ou em sede de habeas
corpus.
A República Velha tem o
seu termo com a revolução de 1930 e a institucionalização dessa
reforma se dá com a Constituição de 1934. Algumas mudanças
merecem destaque: mantém-se a ideia do controle judicial incidental
de constitucionalidade, mas diferentemente do sistema americano, não
temos no Brasil o stare decisis (efeito vinculante do precedente).
Introjeta-se, então a comunicação
ao Senado.
O STF declara a inconstitucionalidade e comunica ao Senado que,
querendo, determina a suspensão da execução da norma. Aquela
época, havia determinados preconceitos em torno da ideia de eficácia
erga omnes por parte do STF, por isso quis-se dar a um órgão
político a função de suspender a eficácia da norma, a rigor uma
função com características judiciais.
Outra novidade relevante:
para declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais exige
maioria absoluta (cláusula
full
bench).
Veja, para declarar a constitucionalidade, não é necessária a
maioria absoluta do tribunal, a própria turma pode fazê-lo, mas se
a maioria da turma entende pela inconstitucionalidade, deve suspender
o processo e remeter a questão para o órgão superior do tribunal
(pleno ou órgão especial) e, após um juízo sobre a questão, o
caso volta para a turma julgar.
A grande mudança de 1934
que de alguma forma vai contaminar o debate político até os nossos
dias é a chamada ação
direta,
naquele momento muito associada a ideia da intervenção federal que
já tinha dado ensejo àquela alteração, em 1926, dos chamados
princípios sensíveis. Em 1934 surge uma exigência para a
decretação de intervenção federal: a edição de LEI FEDERAL
submetida a apreciação do Supremo, por iniciativa do Procurador
Geral da República, indagando se havia um caso de
constitucionalidade. Se o Supremo entendesse que a lei era
constitucional, então o governo poderia executar a intervenção.
Foi nesse contexto que surgiu a ação
direta de inconstitucionalidade
no Brasil. Não era propriamente uma ADI, mas uma ação visando
declarar a constitucionalidade da lei de intervenção federal. Tudo
girava em torno dos princípio sensíveis e a limitação de poder do
governo de decretar a intervenção.
Outra
novidade importante sobre a Constituição de 1934: com a redução
do âmbito de alcance do habeas corpus, a CF de 1934 cria o mandado
de segurança. É uma mudança importante, pois colmata a lacuna
verificada após a reforma de 1926 e, também, porque a partir daí,
nós passamos a ter vários instrumentos, mesmo no âmbito da Suprema
Corte, para defender direitos fundamentais: habeas
corpus,
mandado de segurança, ms coletivo (agora com a CF 1988), habeas
data
e mandado de injunção.
A
Constituição de 1934 é uma constituição com vida muito curta. Em
1937 ocorre um golpe e edita-se outra constituição. Muitos
institutos concebidos na CF de 1934 certamente não foram usados
pelas crises políticas que se sucediam na época.
A Constituição de 1937
era fortemente autoritária e, em alguns pontos, podemos dizer, até
totalitária. Tinha a promessa de um parlamento que nunca se
instalou. Prometia um plebiscito para referendá-la, o que nunca
aconteceu. Regeu nossa vida institucional até 1945. A novidade é a
previsão de um instituto muito singular que permite que uma decisão
do STF declarando a inconstitucionalidade de uma lei seja revista
pelo Parlamento, que pode confirmar ou cassar a decisão do Supremo.
Era algo bastante radical. Essa norma vai ser aplicada em alguns
casos, dando ao presidente da República um poder imenso, sendo um
instituto que nunca mais foi reproduzido em nosso sistema
constitucional. Um modelo ditatorial com grande limitação de todos
os poderes, salvo o Executivo.
Encerrado esse ciclo
ditatorial de 1937 a 1945, a Constituição de 1946 vai tentar
resgatar alguns institutos da Constituição de 1934: o resgate da
fórmula de suspensão da execução da norma pelo Senado, o resgate
do habeas corpus e do mandado de segurança e o restabelecimento
daquela fórmula quanto a competência dos tribunais para declarar a
inconstitucionalidade por maioria absoluta.
A
grande novidade da Constituição de 1946 é a introdução de uma
nova ação direta:
a representação
de inconstitucionalidade
pelo PGR contra lei ou ato normativo estadual que pudesse afrontar
os princípios constitucionais sensíveis. O PGR, em 1946, exercia
papel importante enquanto representante da União em juízo e
enquanto chefe do Ministério Público. Aqui está o embrião da
nossa ação direta de inconstitucionalidade. Essa representação
foi pensada para se evitar a intervenção federal, fazendo com que o
estado adotasse a orientação do STF. Essa ação foi utilizada
amplamente e não raras vezes, o PGR encaminhava pedidos formulados
por terceiros (as vezes o Ministro da Justiça) alegando que o
estado-membro estava ofendendo princípios constitucionais sensíveis
e, curiosamente, ele próprio exarava o parecer pela improcedência
do pedido.
Foi
essa prática que realmente fez como que avançássemos na
consideração, no prestígio, na atenção a essa ação direta.
Pensou-se, então, em ter um controle abstrato puro, em que lei
estadual e federal seriam atacadas tendo como parâmetro não somente
os princípios sensíveis, mas toda a Constituição. A Emenda
Constitucional de 1965 cria a representação de
inconstitucionalidade
in abstrato,
de modo que toda lei ou ato normativo federal ou estadual pode ser
apreciado em abstrato tendo como parâmetro toda a Constituição
Federal, sendo o legitimado para iniciar esse processo somente o PGR.
A Constituição de 1967
e 1969 vai incorporar todos os elementos da Constituição de 1946 e
também a representação de inconstitucionalidade. Mas, sobre essa
constituição, o Brasil vivenciou uma grave crise sobre a
representação de inconstitucionalidade.
Quando no Governo Médici,
em 1970, lança um decreto estabelecendo censura prévia sobre
livros, jornais e periódicos, o MDB (Hoje PMDB) leva uma arguição
de constitucionalidade ao PGR, dizendo que esse decreto é
inconstitucional. O PGR, em razão do contexto político da época,
arquiva o pedido. O MDB, então, vai levar ao Supremo uma Reclamação,
dizendo que o PGR estava usurpando a competência do STF, se negando
a levar a matéria e se arvorando na posição do juiz. O STF, por
maioria, decidiu que o PGR não estaria obrigado a levar o pedido ao
Supremo.
Esse é um caso difícil
julgado em 1971. O ministro Adalto Lúcio Cardoso, que fora um dos
responsáveis da revolução de 1964, vai protestar no tribunal,
dizendo que a decisão não poderia ser tomada daquela forma. Diante
da decisão da maioria, Adauto Lúcio Cardoso joga a toga sobre a
cadeira e pede sua aposentadoria.
Em
1971, o STF julgou constitucional a lei da censura prévia
(Decreto-lei nº 1.077), editada pelo Governo Médici. Vencido o
Ministro Adauto Lúcio Cardoso manifestou sua indignada repulsa
diante daquela decisão, despiu sua capa. atirou-a em sua curul e
abandonou acintosamente o recinto. Todos os jornais, no dia seguinte,
deram grande cobertura ao ocorrido, inédito na vida do STF. Evandro
comenta que o gesto de Adauto foi teatral, mas diz que tal reação
depende do temperamento de cada um. "A verdade, parece-me, é
que a atitude do Ministro Adauto Lúcio Cardoso foi única, continua
única, e provavelmente nunca se repetirá." Foi, assim, muito
valioso o depoimento do Ministro Evandro Lins e Silva ao CPDOC,
publicado com o título de O Salão dos passos perdidos. (RODRIGUES,
Leda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1991, v. 1, p. 480)
Várias
vezes esse tema voltou a apreciação do STF, que reiterou a tese de
que o PGR não estaria obrigado a ajuizar a representação de
constitucionalidade. Foi esse entendimento que fez com que o processo
constituinte de 1988 nós produzíssemos esse modelo misto de
controle de constitucionalidade.
Com
a Constituição de 1988, mantemos o controle concreto incidental de
normas, inclusive com papel do Senado na suspensão da execução da
lei declarada inconstitucional, a representação interventiva, os
remédios constitucionais ampliados (HC, HD, MS, MI) e, no controle
abstrato apliou-se a legitimidade ativa (Presidente da República,
Mesa da Câmara e Senado, Governadores Partidos Políticos com
representação no Congresso, Confederações Sindicais em âmbito
nacional, Associações em âmbito nacional, o Conselho Federal da
OAB) para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade, o
que representa uma clara ruptura com a jurisprudência até então do
STF.
Com
a Constituição de 1988, ao lado do amplo controle incidental
difuso, passamos a ter esta amplíssima ação direta que é a ADI
prevista no art. 103 e todos os seus incisos, o que possibilidade que
qualquer interessado legitimado leve ao STF a alegação de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. Os
passos seguintes, a partir da EC n. 3, a criação da ação
declaratória de constitucionalidade e, em tempos mais recentes, em
1999, disciplina-se a arguição
de descumprimento de preceito fundamental ADPF,
além da manutenção da representação
de caráter interventivo,
todas essas ações do modelo concentrado de controle de
constitucionalidade.
Não
são poucos os autores que apontam que nosso sistema, nesse período,
caminhou para um perfil mais fortemente concentrado de
constitucionalidade, ainda que mantido o modelo incidental. A partir
da EC n. 45/2004, o controle incidental no STF passou por grandes
mudanças, com a instituição da repercussão geral como requisito
de admissibilidade do recurso extraordinário, que de alguma forma
lembra o instituto americano do writ
of certiorari.
Além
disso, a referida EC trouxe a súmula com caráter vinculante. Desde
haja aprovação por 2/3 do tribunal, a decisão do STF em controle
incidental passa a ter efeito vinculante. O STF hoje discute se a
decisão que toma em caráter incidental já não deveria ter caráter
vinculante, independente de comunicação ao Senado.
Não
se pode deixar de destacar que muitas das questões que não chegavam
ao STF em sede de controle concentrado, como o direito anterior a CF,
agora estão chegando ao tribunal pela via da ADPF. A rigor, os dois
sistemas (difuso e concentrado) estão muito mais complexos.
Em
resumo:
- Inicialmente era um controle incidental puro;
- A partir de 1934: um tipo de ação direta voltada para intervenção federal; Ação direta abstrata, feita pelo PGR;
- 1988 – Modelo singular: controle amplo e incidental, inclusão do papel de revisão das decisões pelo STF; competências do STF para julgar vários tipos de ação direta.
Uma
nova função do STF, que já não trata mais de direito federal
(essa competência passou ao STJ), que passa agora a uma função de
corte constitucional).
* Escrevi esse texto tomando por base aula proferida pelo professor e ministro do STF Gilmar Mendes veiculada pelo programa "Saber Direito" do canal TV Justiça.

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