quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Decisões relevantes: alteração da forma de cumprimento de pena no regime semiaberto por falta de estabelecimento adequado. Projeto "Educação para apenados do regime semiaberto".

  O juízo de direito da Comarca de Formosa (GO) decide de ofício alterar a forma de cumprimento do regime de pena semiaberto para todos os apenados, acolhendo interessante projeto denominado "Educação para apenados do regime semiaberto", promovido pelo Colégio Mauro Alves Guimarães. (Importante: ainda não há na comarca unidade da Defensoria Pública, não sendo garantido aos presos o direito constitucional à assistência jurídica integral gratuita por meio da instituição)



AUTOS:                     201403758314
NATUREZA:             Processo Administrativo

Examinados os autos

Trata-se de incidente de execução penal instaurado por este Juízo eventual  modificação  da  forma  do  cumprimento  de  pena  em  regime  semiaberto  na Comarca de Formosa após apresentação de projeto “Educação para apenados do regime semiaberto” pelo Colégio Mauro Alves Guimarães.

A Agência Goiana do Sistema de Execução Penal se manifestou nos autos, informando que em janeiro  de  2015  será  possível  a  disponibilização  de monitoramento eletrônico para os juízes criminais da comarca.

A Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de  Formosa, manifestou-se pela viabilidade da modificação.

O Ministério Público não se manifestou nos autos, mesmo após permanecer com o processo por trinta dias.

Vieram os autos conclusos em 19/12/2014.

É o relatório. Decido.

Em preliminar, cabe uma explicação: pretendia este juiz decidir antes de  iniciar  o  recesso  forense, entretanto,  mesmo  após  reiterados  pedidos,  a  nobre representante do Ministério Público não devolveu o processo, o que, com pesar, nos obrigou a determinar a busca e apreensão destes autos. Temos que dar o resultado para iniciar reformas e outras providências necessárias logo no início do ano. Sem contar que estaremos em férias regulares a partir do dia 07/01/2015. Daí porque a decisão durante o recesso forense.

Pois bem. De início, cumpre salientar que não há na Comarca de Formosa o estabelecimento adequado de Colônia Agrícola, Industrial ou similar destinada ao cumprimento da pena em regime semiaberto.

Há muitos anos estabeleceu-se aqui que o cumprimento da pena em regime semiaberto ocorresse na sede onde se cumpre a pena em regime fechado, na mesma edificação, separadas que estão por duas portas de grades.

A obrigação consiste em se apresentar à sede da Cadeia Pública local (recentemente  passou  a  chamar-se Penitenciária  de Formosa,  obviamente  sem qualquer obra física) às 20h e sair do estabelecimento às 6h da manhã do dia seguinte, todos os dias da semana.

Ocorre que, em tempos recentes, a população carcerária tem aumentado muito e o descumprimento da pena também, de modo que atualmente cerca de 70% das pessoas que cumprem pena em regime fechado ali estão em decorrência de descumprimento da pena em semiaberto, sem que ocorra qualquer novo crime. 

Deveras, as fotos constantes nos autos demonstram claramente a impossibilidade estrutural de se prosseguir com essa forma de cumprimento da pena: são quatro “celas coletivas”, sendo uma maior com aproximadamente 24m² e outras três que medem cerca de 12m². E abrigam, hoje (22/12/2014), em cumprimento regular da pena, 59 homens e 1 mulher. Isso mesmo: aproximadamente 60 m² para abrigar 60 pessoas durante 10 horas diárias!

O resultado disso é testemunhado pelos agentes prisionais e pelo diretor do estabelecimento: pessoas que chegam por último se acomodam no corredor, agacham rente a parede com as pernas dobradas e ali permanecem por 10 horas nesta posição (entre 20h e 6h do dia seguinte). Isso tudo até bem pouco tempo com apenas um local para as necessidades pessoais (não se pode chamar de banheiro – fotos juntadas). Atualmente existem dois locais para essa finalidade à disposição deles. 

Esse o quadro atual em alguns números e igualmente constatado pelas fotos acostadas aos autos. Sob  o  aspecto  jurídico,  volto  a  frisar:  não  existe  qualquer estabelecimento prisional adequado para o cumprimento da pena em regime semiaberto em Formosa.

No presente feito, desdobra-se a opção do cumprimento de forma diversa: a pessoa chega ao estabelecimento às 19h, terão três salas de aula, em que a pessoa que cumpre pena terá que se submeter às aulas; obviamente caso tenha estudo concluído poderá ser monitor ou exercer qualquer outra função relevante no período. As aulas  ocorrerão  de  segunda  a  sexta-feira,  sendo  que  nos  demais  dias  bastaria  a assinatura deles por ponto digital.

Pois bem. Creio que a modificação da forma de cumprimento de pena em regime semiaberto nesta comarca é medida imperiosa, não apenas para reduzir a situação caótica, mas sobretudo tentar dar algum sentido útil para esta pena. Porque no modelo atual está claro que o propósito é apenas punir (sentido retributivo da pena), jamais  para  (tentar)  ressocializar  ou  reeducar.  Aliás,  a  história  das  penas  sempre privilegiou esse caráter retributivo.

Confesso que nos faltou coragem para interditar o local onde se cumpre  a  pena  em  regime  semiaberto  e  simplesmente  determinar  que  os  detentos apenas  assinem  diariamente  o  comparecimento  no  estabelecimento  prisional.  Ora,  a violação à proibição de impor penas cruéis (CF/88, art. 5º, XLVII, bem como art. 5º, item 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos) é clara  e evidente não apenas no regime semiaberto mas também no fechado nesta comarca.

Interessante que a aplicação da pena não causa maior desconforto a sociedade ou mesmo aos juristas envolvidos, mas ao longo da história sempre foi causa das mais graves omissões do Estado em desfavor do indivíduo. Parece que o fato de a pessoa encarcerada ter cometido um equívoco na vida autoriza que o comportamento estatal de absoluta omissão e o Judiciário quase sempre reduz a discussão a questão de política pública, como a se eximir da responsabilidade. Veja a doutrina sobre o tema: 

A história das penas é, sem dúvida, mais horrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque mais cruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido as produzidas pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e às vezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um. (...) Seria impossível fornecer um inventário, ainda que sumário, das atrocidades no passado concebidas e praticadas sob o nome de ‘penas’[1].

Para nossa desdita, aqui em Formosa, igualmente escrevemos, com minha  cumplicidade,  várias  páginas  tristes  dessa  história  que  trata  da  forma  de cumprimento da pena (fechado e semiaberto), porque sempre que assino um mandado de prisão contra alguém tenho plena ciência de que estou determinando que coloque essa pessoa dentro de um sistema absolutamente impróprio a abrigar um ser humano.

Por isso, nesse expediente temos a primeira oportunidade que tem o Judiciário local de reduzir (ou tentar) esse drama, pois se trata de uma tentativa de obrigar a pessoa a se submeter a aulas durante o cumprimento de pena em escola regular. Estou  certo  de  que  enfrentaremos  resistência  da  sociedade,  do Ministério Público (que certamente encontrará muitos defeitos, os quais de fato irão existir, mas precisamos de ajuda para aperfeiçoar e não para destruir) e é bem possível que o julgamento de futuro recurso contra a presente decisão terá debates desfavoráveis sobre esse tema. Entretanto, de nossa parte, tenho a plena convicção de que, lembrando da lição de Ferrajoli ora destacada, daqui a muitos anos vou poder olhar ao passado e poder sentir um mínimo de alegria de ter ao menos tentado construir uma sociedade melhor ao desejar que a pessoa presa tem dignidade e merece de nossa parte o mais absoluto respeito, muito embora tenha se equivocado em algum momento da vida.

Ademais,  consta  que  em  janeiro  de  2015  estará  disponível  aos juízes criminais de Formosa o monitoramento eletrônico, o qual poderá ser utilizado em determinados casos, obviamente a serem analisados de modo individual.

Ante o exposto, decreto a modificação do cumprimento da pena em regime semiaberto, no qual o apenado deverá se apresentar de segunda a sexta-feira na sede da Cadeia Pública de Formosa às 19h30 e ali permanecer até pelo menos às 22h30 para participar de aulas a serem ministradas pelos professores do Colégio  Mauro  Alves  Guimarães;  aos  sábados  e  domingos  bastará  o comparecimento no local às 19h30 apenas para assinar a apresentação, tudo de acordo com o cronograma constante no projeto acostado aos autos.

Diante da necessidade de estabelecer reformas no local, determino
o seguinte:

a)     Entre  os  dias  09/01/2015  e  01/02/2015  bastará  que  as pessoas  que  cumprem  pena  em  regime  semiaberto  se apresentem  na  Cadeia  Pública  local  às  20h  e  assinem  o comparecimento na folha de freqüência; nesse período ocorrerá a reforma do prédio;

b)     A partir do dia 02/02/2015 se iniciarão as aulas, a serem promovidas conforme o projeto apresentado pelos professores do Colégio Mauro Alves Guimarães.

Oficie-se o Colégio Mauro Alves Guimarães e a Direção da Cadeia Pública de Formosa sobre a presente decisão.

Oficie-se o Colégio Mauro Alves Guimarães e a Direção da Cadeia Pública de Formosa sobre a presente decisão.

Intimem-se o representante da OAB, subseção de Formosa, bem como o Ministério Público.

Acoste  cópia  da  presente  decisão  em  todos  os  processos  das pessoas que cumprem pena em regime semiaberto nesta comarca.



Formosa/GO, 22 de dezembro de 2014.

FERNANDO OLIVEIRA SAMUEL
Juiz de Direito
Em Substituição Automática

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão : teoria do garantismo penal. 3ª Ed. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 355.

A decisão pode ainda ser baixada no seguinte link

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